Vigésima Parte
Vigésima Parte
Corpos em Chamas
Após o linchamento, a população enfurecida reuniu todos os corpos dos policiais num montão repugnante – que em muito se assemelhava ao que ocorria nos campos de concentração nazistas –, a fim de atear fogo. Para completar a fogueira humana, ainda juntaram aos corpos dos sessenta policiais, as dez vítimas atingidas durante o enfrentamento. Em seguida trouxeram galões e mais galões de gasolina, conseguidos de um posto ali próximo, e fizeram uma grande fogueira de corpos humanos. O cheiro de carne assada chegou a quilômetros de distância, inclusive aos helicópteros de televisão que registravam a insanidade. A fumaça negra dominou os céus da região central do bairro, só aumentando a euforia e excitação geral. De novo, os mais exaltados incendiaram também as demais viaturas, intensificando as nuvem negras que se expandiam até o horizonte onde começava a surgir uma enorme lua cheia que logo seria completamente encoberta. Viaturas e mais viaturas de reforço tentavam chegar ao local, mas era inútil, pois o conflito já se espalhara por toda a capital, da Zona Sul à Zona Norte, da Zona Leste à Zona Oeste, assim como também na Zona Central. E onde quer que eles fossem, eram impedidos de chegar, pois o conflito já se tornara uma verdadeira guerra urbana, na qual os alvos eram prédios públicos, monumentos, bancos, delegacias, lojas, igrejas, casas lotéricas, templos, carros de luxo. Nada escapava das turbas enlouquecidas. Em todos os bairros da Zona Leste, as principais ruas de acesso estavam totalmente bloqueadas por entulhos, sacos de lixo, madeiras, pneus, móveis velhos, viaturas “confiscadas”, carros, ônibus, postes, etc. E havia muito fogo. Para onde quer que se olhasse, lá estava um monte entulhos em combustão. “Os céus nunca estiveram tão enegrecidos e sombrios, o ar tão irrespirável! “Se isso não é o prenúncio do Apocalipse e o sinal da volta do Senhor para nos resgatar à sua morada celestial, então é o próprio inferno que foi transferido de seu lugar original para o mundo dos vivos!”, gritava o pastor aos seus fiéis apavorados, pouco antes que uma legião de vândalos, liderada pela velhinha psicopata invadisse a igreja e começasse a quebrar tudo, inclusive o pobre pastor, vitimado por uma série de cadeiradas que o deixaram arrebentado, porém vivo, dando graças a Deus por ter sido poupado de lesões mais graves – embora as sequelas resultantes logo mostrassem seus resultados mais sombrios, deixando-o cego, surdo, mudo e aleijado, e por fim, morto. Morto como somente um corpo sem vida pode ficar. É. Parecia que Deus estava pouco se lixando pro que acontecia. Certa viatura tentou furar um bloqueio humano, atropelando várias pessoas. Mas foi parada e empurrada contra um muro. Os policiais sairam, armas em punho. Mas não parecia haver saída ante tamanha multidão de gente gritando como verdadeiros animais ensandecidos. Aquilo não parecia mais um mero conflito isolado. Tudo que se via era caos, uma bagunça generalizada. Sem saída, os policiais ameaçavam atirar em quem se aproximasse, pois não havia outra alternativa senão acalmar os ânimos através da bala. Mas as pessoas não se intimidavam. Não existia mais o medo da morte, apenas uma fúria cega que fugia à própria compreensão da razão aparentemente extinta. De repente um homem histérico com um pedaço de madeira na mão avançou à frente dos demais a fim de desferir golpes contra os policiais. – Vocês assassinaro meu filho, miserávis! Um dos policiais atirou e o homem tombou. A população disparou para cima dos três, que imediatamente se trancaram dentro da viatura numa vã tentativa de vasar por entre a multidão. Mas a turba enfurecida começou a quebrar o veículo com tanta ferocidade que em apenas alguns segundos a mesma se transformara numa verdadeira sucata. As portas foram arrebentadas e os policiais arrastados para fora ao berros. As pauladas tiveram início, incessantes e impiedosas. Em menos de meio minuto, os policiais já estavam irreconhecíveis, meros pedaços de carne remoídos como se houvessem passado por um moedor de carne. Alguém então lançou um coquetel molotov dentro do que restava da viatura, e o fogaréu teve início. A gritaria de raiva era o prenúncio da intolerância que se estenderia de maneira incontrolavel e irremediavel, como um vírus mortal se expandindo ao vento. – A população, cega pela insensatez, está completamente seduzida pela sedição – lamentou certo político pela televisão. A pobre velhinha vítima da negligência num hospital da Zona Leste de São Paulo fora apenas o pavio daquele estopim, como o pavio de uma dinamite que apenas precisava ser aceso para explodir. O que viria a seguir era algo que há muito estava engasgado na população marginalizada, segregada e oprimida por um sistema desigual, cruel, corrupto e racista. Dezenas de policiais massacrados, um monte de viaturas incendiadas. E cada vez mais a população revoltada aumentava em número. A policia não conseguia mais se impor, pois a situação estava totalmente fora de controle. Viaturas tentavam se evadir, mas eram rapidamente cercadas pelo povo enlouquecido que em poucos segundos deixava tudo de cabeça pra baixo. E sempre tinha alguém com um balde de gasolina, pronto para jogar nos veículos e incendiar em seguida. Os policiais clamavam, implorando piedade, mas os fósforos eram riscados e lançados sobre os veículos ensopados de gasolina que logo estavam em chamas, sob os gritos de terror de homens impotentes sendo assados vivos. E tudo sendo mostrado ao vivo pelas câmeras de televisão a partir de vários helicópteros que sobrevoavam os bairros, assim como pela internet em imagens aterorizantes feitas pelos próprios revoltados diretamente dos locais. Um enorme efetivo foi enviado e distribuído pelos locais mais conturbados para acalmar os ânimos e controlar as multidões ensandecidas. Mas os policiais se viram confrontados com algo inusitado, pois as bombas de gás lacrimogênio simplesmente não intimidavam as turbas. Além do mais, o que era lançado contra eles, logo estava de volta dispersando os próprios proliciais. Balas de borracha pareciam inúteis. E quando a massa enlouqueida avançou contra as fileiras minúsculas, era como um formigueiro a disputar uma presa. Bastou então que um policial aterrorizado disparasse um tiro letal, para que os demais começassem a atirar sem piedade. Era gente tombando em cima de gente, num verdadeiro massacre. E mesmo assim a população continuou correndo e se aproximando cada vez mais. Os helicópteros da polícia receberam ordens de atirar, porém apenas no intento desesperado de dispersar o povo revoltado, que certamente iria esmagar as formações policiais em terra. Porém, mesmo sob tiros e um monte de gente sendo alvejada, a população continuou avançando. Então de repente, como um salvador da Pàtria, não se sabe de onde, alguém disparou um tiro de bazuca que fez o helicóptero da polícia militar girar como um pião e se espatifar numa explosão ensurdecedora exatamente entre as dezenas de policiais em terra, causando uma verdadeira matança, que só foi complementada pelo povo, que saíu dando pauladas às cegas e terminando o serviço iniciado pelo próprio helicóptero. O povo perdera a razão, gritando alucinadamente como um bando de selvagens sedentos por sangue, e aquilo só os deixava ainda mais eufóricos e excitados, tomados pela adrenalina da loucura coletiva. Outro helicóptero se aproximou, de lado para facilitar a mira do atirador, que não errava um alvo sequer. Mas não se sabe de onde, uma sequência fulminante de tiros de fuzil riscou os ares, atingindo o atirador em cheio. No momento seguinte, um novo disparo de bazuca fez-se ouvir. Houve uma explosão e o helicóptero se estilhaçou nos ares, mais parecendo uma chuva de artifícios.