Sexta Parte

Sexta Parte

                             Sexta Parte

                        Sob fogo cruzado

Os revolucionários, eufóricos, avançavam destemidos rumo ao lado baiano da ponte, para onde as tropas federais e a polícia recuavam. Os sons de tiros já não assustavam mais como meses antes, e a morte de companheiros já não causava tanto impacto. Afinal, o ser humano é plenamente adaptável a qualquer coisa. Se o que antes fedia a putrefação e era sinônimo de horror, algo inaceitável, àquelas alturas nem era mais sentido, tornando-se algo absolutamente banal. O avanço cadenciado da guerra não podia parar. No entanto, junto com a cadência espontânea, avançava a malevolência disfarçada de patriota, mas com claras intenções de causar danos não à nova ordem por se erguer do caos, mas àqueles considerados inimigos da nova ordem. Poderia ser dito que uma nova ordem, justa e sem máculas, não pode ser levantar de um mar de sangue. Mas esta tese poderia ser refutada com o seguinte argumento: da decadência política e social, é inevitável a ascensão do colapso moral. De repente um movimento distante à beira do rio, chamou sua atenção. Ele se posicionou atrás de um caminhão carbonizado a fim de proteger-se e mirou a lente de sua câmera, aumentando o zoom para encurtar a distância de cerca de uns 800 metros à direita da ponte, na margem do lado pernambucano, onde uns quinze homens armados apontavam suas armas para seis homens com uniformes de policiais. O fotógrafo, prevendo o que viria em seguida, começou a clicar freneticamente. Um cinegrafista que se protegia um pouco atrás também viu a cena e avançou abaixado até o muro de proteção da ponte, mirando sua câmera em direção ao rio. A cena horripilante da execução foi registrada em minúcias. Por um instante o fotógrafo parou atônito, enquanto contemplava os seis corpos boiando nas águas do rio. Voltou a fotografar quando três dos revolucionários adentraram as águas e com um evidente cinismo e desdém empurraram com os pés os corpos em direção à correnteza, numa atitude de puro desprezo para com a vida. Logo o “Velho Chico” arrastava os corpos rumo ao desconhecido. Aquilo não representava exatamente uma suprpresa para o jovem repórter fotográfico francês. Ele já presenciara outros crimes de guerra. Mas além de repreensivo, o ato era chocante de ser visto. Gradualmente os corpos foram sendo engolidos pelas águas avermelhadas. Muita coisa ainda iria rolar, pois aquele combate infernal mudara apenas de cidade. Se antes os federais quase tomaram Petrolina, do lado pernambucano, agora recuavam desordenados rumo ao lado oposto do rio, para a cidade de Juazeiro, na Bahia. Pela barulheira intensa da artilharia, o combate não parecia nem de longe estar próximo de seu desfecho. De repente vários tiros ecoaram no ar, um dos quais passou num zunido, sibilando bem perto de sua cabeça. Ele se abaixou num sobressalto, o coração disparado. Escapou por um triz. Naqueles tempos críticos, nem mesmo jornalistas, protegidos por leis rigorosas, podiam vacilar. A guerra não escolhe vítimas e nem culpados. E com a violação dos direitos humanos acontecendo escancaradamente a todo momento, era preciso ser muito prudente. E foi exatamente prudência que faltou ao cinegrafista, quando se levantou da proteção da ponte a fim de melhorar seu ângulo de visão. Um tiro fulminante de fuzil traspassou a lente de sua câmera, atravessando-lhe a cabeça e lançando-o para trás num abrupto e mortal solavanco. Miolos de cérebro estavam espalhados pelo chão e grudados no caminhão parado ao lado. – Merda de cinegrafista estúpido, vociferou um oficial revolucionário que se aproximou rapidamente para ver o que sobrara do jovem inerte. Em seguida foi até a mureta de proteção e soltou um estridente assobio em direção aos homens na margem do rio. – Voltem às suas fileiras, agora! – gritou ele com as mãos em concha sobre a boca e a gesticular alucinadamente – Depressa! O jovem fotógrafo relutou, mas correu até o corpo do rapaz. Não podia fazer nada. Então tirou rapidamente algumas fotos do corpo sem vida, a cabeça deformada pelo poderoso tiro, em seguida puxou sua credencial, agarrou sua câmera no chão e saíu correndo a fim de se proteger atrás do caminhão repleto de combatentes, de onde o jovem oficial o chamava aos gritos. – Você quer morrer também? Venha pra cá, idiota! O fato positivo durante a guerra era que nenhuma emissora de televisão, rádio, jornal ou revista foi atacada. Algo realmente notável e sem precedentes. Todos os envolvidos no conflito tinham interesse em mostrar o seu lado da história, e para tanto, davam liberdade total à imprensa, assim como toda proteção dentro das possibilidades. Não havia barreiras ao trabalho dos jornalistas, que trabalhavam livremente na cobertura da guerra. Embora várias baixas tenham sido registradas, foram casos isolados, e em grande parte por conta de fatalidades inerentes à guerra ou por pura negligência dos próprios profissionais, pois jornalistas são por natureza dotados de coragem extraordinária e desejo ardente de cobrir e registrar os fatos. E aí é quase impossível protegê-los sempre. Afinal, o acaso sobrevém a todos, e jornalistas também são seres humanos.