Segunda Parte
Segunda Parte
Os sons do silêncio
Aquilo ia contra todo o bom senso e espírito pacífico dos brasileiros. Não era possível que a nação mais hospitaleira do mundo, de onde se originavam as mulheres mais lindas, subitamente voltasse à barbárie. Não fazia sentido. Na verdade, nada mais fazia sentido. E se alguém quisesse enlouquecer tentando encontrar justificativas, era só parar para refletir sobre o passado recente, antes de o povo recorrer às armas como solução final para todos os problemas que afligiam o país. Fora tudo tão veloz e inesperado, que era até difícil de acreditar. Então melhor não pensar e fazer o que tinha que ser feito. Simples assim. Macabro assim. Irracional assim. Selvagem assim. Traumatizante assim.
Enfim, tudo era muito confuso de ser compreendido, digerido e assimilado, até mesmo pela repentinidade da eclosão da guerra, cujo estopim fora algo absolutamente inusitado e muito, mas muito banal. Aviões bombardeiros cruzavam os céus, e caças em formação deslizavam rumo às fileiras revolucionárias no interior do sertão, onde a carnificina rolava solta. As imagens que chegavam de lá eram estonteantes. A artilharia de ambos os lados era incessante e iluminava as noites enluaradas, regando com sangue a terra sedenta de água, num horrendo e discrepante contraste com a bela e inocente poesia cantada que dizia: “não há, ó gente, ó não, luar como esse do sertão”.
Certo líder revolucionário pernambucano de muita influência e que ficara bem conhecido nos anos setenta durante o regime militar – sob o qual sofrera severa perseguição às mãos da polícia – fez um comentário considerado inicialmente bastante confuso, mas que só veio a ser interpretado em sua essência com o decorrer da revolução que eclodiria naquela feroz guerra civil: “Eu não sou a favor da desordem e do caos inconscientes, mas da consciência e ordem que podem advir do caos”. Mais de quarenta anos depois das torturas sofridas e dos companheiros aniquilados, ele sentia renovado seu ódio contra um sistema que continuava distante de ser o ideal. No ínterim, sua indignação para com as decadentes, incompetentes, violentas e assassinas instituições de manutenção da ordem pública brasileira era uma força motivadora que alimentava em seu âmago o desejo pela guerra civil. Mas não era só ele. No fundo, era exatamente o que toda a população desejava: algo radical que fizesse o sistema corrupto e doente sucumbir de maneira irremediável. Revolução, guerra civil, levante popular, etc. Palavras-chaves principais nas buscas do ex-guerrilheiro pernambucano que nutria sentimentos repreensíveis pelas instituições públicas e um ódio desproporcional contra as instituições policiais e de segurança de onde quer que fossem. Oriundo de uma família de militares, seu pai, um velho coronel do exército, costumava dizer que ele era “a ovelha negra da família”, “a parte podre da maçã”. “Você cospe no prato que come, seu comunistinha de araque!”, dissera-lhe certa vez seu pai aos berros, ciente de suas ações subversivas e dos perigos que isso representava para sua vida. No ínterim, ele sabia que seu pai se preocupava e não queria que ele acabasse dentro de alguma valeta por aí, com a boca cheia de formigas. Muito provavelmente sua sobrevivência durante a ditadura tenha sido por conta da influência de seu pai e de outros membros da família que engrossavam o poder do regime. Mas a influência de sua família não foi o suficiente para impedi-lo de conhecer os horrores da metodologia usada pelos militares para obter confissões. As torturas eram não apenas brutais, mas executadas de modo extremo. Desprezando gênero e idade, a frivolidade era a mesma. Os procedimentos eram de uma crueldade digna do próprio satanás, e muitos não suportavam, sucumbindo sob a crueldade. Na atual conjuntura, entretanto, o ex-guerrilheiro sabia que o apoio e adesão das Forças Armadas eram essenciais para o êxito da revolução. Muitos militares insatisfeitos estavam se bandeando continuamente para os revoltosos, mas ainda não era suficiente. Por enquanto, e por algum tempo ainda, o avanço das forças do Governo, com seus carros blindados, aviões de ataque e helicópteros que lançavam o terror sobre os insurgentes ainda pouco organizados, causavam perdas consideráveis nos campos de batalha. No ínterim, antigas mágoas reprimidas, traumas latentes vívidos como a própria loucura eram a justificativa para perseguições e massacres. Era o fim da racionalidade e da razão. Os sãos ficavam loucos e os loucos, cada vez mais insanos. Para o revolucionário pernambucano, era algo absolutamente familiar, quase intrínseco. Loucura externada à extenuação quando em seus raros momentos de solidão no porão blindado de sua casa em Recife, se curvava diante do santuário aos mártires do regime militar, ex-companheiros de juventude, estudantes e idealistas de um país mais justo. Santuário que clamava por vingança. Uma cobrança que lhe sobrevinha em persistentes sonhos noturnos, sempre na sórdida forma de um macabro cavaleiro negro a empunhar sua espada judicial ensanguentada em meio a um mundo de corpos humanos fardados, tanques de guerra destruídos, aviões em chamas e um céu tenebroso, repleto de aves necrófagas. Eram visões de um mundapo* tão real e estarrecedor que chegava a causar arrepios até nele mesmo. E o mórbido sonho se repetia periodicamente. Era o apocalíptico cavaleiro sem rosto sempre voltando para atormentá-lo, como prenúncio de algo ainda por vir. Cavaleiro que antes de partir na escuridão, desferia golpes relâmpagos com sua espada chamejante contra o estandarte nacional, cortando-o em seis partes, que esvoaçavam pelos ares e uniam-se sobre um círculo de fogo em constante movimento.
A revolução conduziria a uma sangrenta guerra civil. Com a guerra civil, todas as mágoas adormecidas despertariam. Os massacres se tornariam algo tão rotineiro quanto o estupro. E as minorias seriam um alvo perseguido à exaustão, exauridas ao máximo de sua resistência e até mesmo de sua autoconfiança.