Décima Sexta Parte
Décima Sexta Parte
O Caos que Conduziu ao Caos
E pensar que o estopim de toda aquela carnificina bélica havia ocorrido num hospital público da Zona Leste de São Paulo – apenas um seis meses antes –, onde ao anoitecer de uma sextafeira chegara uma senhorinha a passar mal. Assim como muitos outros a aguardar pacientemente por um simples atendimento, aquela senhora ficara sentadinha a sofrer, gemendo de dor, resignada como se não tivesse direito a atenção ou atendimento. Conformada como quem aguarda por um favor e não pode cobrar ou reclamar de nada. E ninguém aparecia para prestar-lhe socorro. Quando enfim apareceu alguém, a velhinha ergueu a mãozinha trêmula, enquanto mantinha a outra mão sobre o abdomen dolorido. – A senhora se acha melhor que os outros, vovó? Olhe só o tamanho das filas! Então comporte-se e aguarde sua vez, ora bolas! Era só o que me faltava! A pobrezinha primeiro abaixou a cabeça, em seguida a mãozinha, lentamente e envergonhada, como se fosse a pessoa mais egoísta do mundo. Recolheu-se em seu sofrimento atroz, enquanto o médico gorducho se afastava com a pompa de quem se sentia o dono do mundo. A situação chegou a um ponto em que as próprias pessoas que aguardavam decidiram intervir a fim de que viesse alguém para atender aquela pobre senhora. Mas não aparecia ninguém. E quando enfim a velhinha subitamente abaixou a cabeça e tombou para a frente, ficando imóvel no lugar onde estava sentada, chegou um despreocupado médico só para constatar o que todos já sabiam: a coitadinha estava mortinha da silva. O povo que lotava o hospital, enfurecido, começou a quebrar tudo. Os guardas tentaram conter a multidão e foram massacrados por porradas e pauladas. Leitos foram invadidos e médicos arrastados pelos corredores, sob socos e pontapés. Alguém mais exaltado ateou fogo nas papeladas da recepção, e de repente teve início um incêndio que em questão de minutos tornar-se-ia incontrolável. Logo o fogo tomou conta do prédio inteiro. Gritos de pacientes desesperados e gente se evadindo por todos os lados em meio ao fumaceiro e às chamas intensas que se alastravam dramaticamente, fizeram daquele lugar um verdadeiro inferno. Um médico gorducho (exatamente o que tratara a velhinha com desprezo) saíu desorientado, o jaleco em chamas e a pele praticamente se desprendendo do corpo. Caíu de bruços, os braços abertos e a boca escancarada. A coisa ficou tão feia que os bombeiros simplesmente não sabiam por onde começar. Médicos, enfermeiros e pacientes saíam correndo com os corpos em chamas, sem que ninguém pudesse fazer absolutamente nada, tamanha a quantidade de gente que precisava de ajuda imediata. Os gritos de horror se expandiam pelos ares de São Miguel Paulista. A área central do bairro virou um verdadeiro campo de batalha. Lojas e bancos eram invadidos e saqueados, a estação de trem foi seriamente danificada, o trem foi impedido de prosseguir rumo a Calmom Viana e apedrejado, sendo incendiado em seguida. A partir de São Miguel, todas as estações foram destruídas em questão de horas, na medida em que as informações iam chegando pelas redes sociais e as pessoas se sentiam não apenas encorajadas, mas motivadas para destruir tudo. Em São Miguel Paulista, logo em seguida à destruição do hospital, tudo virou um pesadelo de chamas que só se propagavam. Ao mesmo tempo, não muito distante dali, no bairro vizinho de Itaim Paulista, quem estava num hospital com nome de santa, de repente se viu envolvido até sem querer na vandalização daquela unidade, que logo também estava em chamas, pondo à prova o poder salvador da santa, que não impediu o terror que sobreveio em seguida. Era como se o próprio Lúcifer estivesse presente com suas legiões, provocando o caos num lugar após outro. Monumentos eram destruídos, patrimônio público detonado, gente ferida, viaturas sendo atacadas num lugar após outro, ônibus sendo incendiados, delegacias escancaradas e presos sendo libertados para ajudar na irracionalidade. Era difícil descrever os eventos, pois enquanto os helicópteros das emissoras de televisão tentavam mostrar os fatos num lugar, a coisa já explodia em outro, não dando tempo nem de atualizar uma informação, haja vista que os eventos se sucediam de maneira muito rápida. As imagens falavam mais alto que as palavras, de modo que as câmeras dos helicópteros mostravam ao vivo e em cores estonteantes a correria do povo descontrolado em meio às explosões num lugar após o outro, numa repentina, impressionante e inimaginável calamidade urbana. Apresentadores de televisão, estupefactos, tentavam explicar os últimos acontecimentos, mas a intensidade do drama só deixava tudo muito mais confuso e inexplicável. O país assistia em choque o desenrolar dos acontecimentos que se alastravam como uma praga. A polícia, completamente desnorteada, não sabia por onde começar, pois os tumultos e a desordem já haviam atingido um patamar assustador. A ordem de conter os ânimos a qualquer preço parecia não fazer sentido àquelas alturas. O não uso de armas letais, de repente, também não fazia sentido, tamanha a súbita loucura que acometia a todos como uma peste avassaladora, levando as turbas a extremos alucinantes. Por fim, após tentar acalmar as animosidades e só levar pauladas e muitas pedradas, um oficial da PM – um homem até “razoável” –, acabou mesmo foi perdendo as estribeiras. O vigoroso e enérgico revide por parte de seus três policiais foi inevitável, “afinal policiais não tem sangue de barata e nem são sacos de pancadas de vândalos e vagabundos”, comentaria mais tarde o secretário de segurança pública. Assim, começaram a descer o cacete nas turbas enfurecidas que só aumentavam em números. E quanto mais a polícia descia o pau, imaginando que assim controlaria os tumultos, mais e mais o povo ficava fora de si. E como sempre existe um imbecil de plantão para piorar o que já não está bom, um policial com cara de folgado e se sentindo o cara, disparou sua arma contra um homem, estourando seus miolos. Aí o bicho pegou de verdade. De um momento para o outro a polícia se encontrou num beco sem saída, encurralada por todos os lados sob os gritos ensandecidos de “linchamento! Linchamento!”. Muitos jovens estavam mesmo era a fim de filmar o confronto para divulgar na internet. Logo estava tudo ao vivo e em cores no YouTube, onde os internautas podiam acompanhar todo a insanidade, que estava bombando na rede mundial e em todas as redes sociais. Um só vídeo postado via celular, em menos de dez minutos atingiu a marca de um milhões de visualizações. De repente, o mundo inteiro estava de olho no que acontecia em São Paulo, onde de um momento para outro todos os aeroportos foram invadidos e fechados, trens e metrôs não circulavam mais e as ruas estavam tomadas pela população indignada.