Décima Sétima Parte
Décima Sétima Parte
A Intervenção do Padre
Após o “lamentável incidente”, os policiais tentaram se explicar, mas a população estava em polvorosa e “farta de conversa furada”. Muitos já seguravam pedaços de paus nas mãos e ainda outros seguravam garrafas e tudo que podiam usar como arma. Parecia que os policiais cercados seriam linchados mesmo. Suas armas não os salvariam daquela multidão enlouquecida. Mas a luz no fim do túnel brilhou pálida e timidamente quando o padre local chegou se espremendo em meio à multidão alvoroçada, a fim de colocar-se entre os policiais cercados e as turbas. – Parem com isso, meus filhos! Em nome de Deus! Porém, para azar do padre, alguém gritou: “ Peraê! Não é esse o padre acusado de pedofilia? Não é esse aí que tá sendo investigado por abusar de crianças?”. E as coisas se complicaram para o padreco também, que inicialmente tentava interceder pelos policiais encurralados, e agora estava juntamente com seus protegidos, completamente em apuros. Em vão tentava argumentar, mas para justificar o ditado que diz que “quanto mais se mexe em cocô, mais ele fede”, o miserável foi agarrado pela beca e sugado pela multidão. Só se ouviam os sons de socos e gemidos de dor, enquanto o coitado do padre, preso em um círculo humano, tomava solavancos seguidos, voando de um lado a outro como uma bola de basquete. De nada adiantavam seus pedidos desesperados de clemência em nome de Deus, pois segundo um agressor barbudo com cara de Lulalá, “Deus não é cúmplice de pederastas e tarados, seu verme!”. E tome-lhe porrada e mais porrada. Debilitado de tanto apanhar, o coitado parecia um boneco desarticulado sendo lançado de um lado para outro dentro do círculo. No meio da multidão, uma velhinha se esforçava para se aproximar, pois também desejava dar sua contribuição. Assim que finalmente ficou cara a cara com o homem de Deus, agradeceu, aliviada, olhando pro céu enegrecido. – Graças ao bom Deus cheguei em tempo! O padre sorriu aliviado pela intercessão da beata. “É em horas assim que a ajuda dos devotos idosos faz a diferença”, pensou o padre, o suor do medo a escorrer-lhe pela face rubra. A velhinha sorriu enigmaticamente para o padre, após o que aproximou seu rosto a fim de dizer algo em particular. – Sabe, padre – sussurrou –, quando criança eu estudei num convento de padres. Eu achava que lá estava protegida por Deus. Mas qual nada. Lá eu conheci o inferno às mãos de um padre como o senhor. Sempre que me chamava para a confissão, ele me estuprava. Isso dói até hoje. E eu tinha somente dez anos. Dez anos, padre. Sabe o que é isso? O senhor consegue imaginar como isso me afetou? – os olhos opacos da velhinha brilharam cheios de mistério. – E o pior, padre, é que depois de violentar meu corpo de criança, ele me fazia rezar, rezar e rezar, para que Deus perdoasse minha culpa. Segundo ele, meu corpo estava habitado por mil demônios, e para que eles fossem expulsos e eu ficasse livre, ele precisava fazer aquilo comigo, pois cada vez que ele me violentava, um demônio era expulso. Imagine só, padre, cada vez que ele me estuprava, eu ficava livre de um demônio. E eram mil demônios! Já pensou? E eu ficava tão agradecida àquele jovem padre bondoso e preocupado com minha pureza espiritual. Era tanto agradecimento que às vezes ele me possuía várias vezes ao dia e várias vezes à noite. Ele era tão dedicado. Era realmente um santo homem. Um servo de Deus. E assim, dos dez aos trezes anos, me submeti rigorosamente àquilo, em silêncio, pois aquele era um segredo entre ele, eu e Deus. Se eu contasse para mais alguém, todos os demônios voltariam para o meu corpo, e então me levariam em vida para o inferno. Eu não queria ir pro inferno, não, não, não, não, não, jamais! Enfim, aos treze anos eu estava finalmente livre dos mil demônios. Livre dos mil demônios, sim, mas com um filhinho no ventre. Um filhinho que fui obrigada a abortar. Já pensou no trauma que isso me causou, padre? Pois é. O padre engoliu em seco. Então num gesto brusco e inesperado, a velhinha com ar dócil e cara de anjo, sofreu uma súbita metamorfose, tascando o cabo de uma bengala na boca do infeliz que quase afundou os maxilares. Dente, não sobrou sequer um. Pelo menos na frente da boca. A turba enfurecida voltou a atacar o padreco, agora com muito mais fervor. Era tanta porrada, chutes e pauladas que o miserável se mijou e se borrou todinho. Não demorou muito para o miserável cair duro e imóvel, os olhos arregalados em direção aos céus. Dado como morto, foi deixado onde estava. Mas – pasmem! – tão logo a turba enfurecida voltou sua atenção para a viatura que continuava cercada, sem chance de fuga, o padreco todo arrebentado, mijado e cagado, se levantou num pinote e saíu se arrastando em direção à sua paróquia a fim de fugir daquele inferno. Parecia um resto humano, todo esfarrapado e inchado de tantos socos e pontapés que tomara. Um mendigo que o viu passar, a bunda à mostra, mancando e cambaleante a gemer de dor, conseguiu ouvi-lo dizer a sorrir, os olhos inchados e a boca completamente desdentada por conta da bengalada desferida pela velhinha: “Enganei os burros, ah, ah, que otários! Maldita turba de bárbaros, brutamontes e ignorantes. Que o diabo carregue a todos esses selvagens pros quintos dos infernos! E que aquela puta velha seja estuprada por mil demônios!”. E assim, o padre entrou em sua igreja e trancou as portas a fim de evitar que os vândalos entrassem e causassem danos ao patrimônio do Vaticano. Mal sabia o padreco que em menos de trinta minutos sua paróquia estaria em chamas e ele, em sérios apuros pois se refugiaria exatamente onde não teria chance de fuga: lá no alto, ao lado do sino. As chamas se alastrariam com tanta fome de oxigênio que em poucos minutos a igreja estaria completamente devorada pelo incêndio, não restando ao padre pedófilo outra alternativa senão saltar lá do alto e se arrebentar no chão – os braços abertos em forma de cruz –, transformado numa enorme poça de sangue a escorrer rumo à sarjeta onde faria a alegria de uma comunidade de pobres ratos agradecidos.