Terceira Parte
Terceira Parte
“Nós éramos felizes e não sabíamos”
Nada mais parecia fazer sentido. Os combates incessantes e ferozes se desenrolavam nos campos e nas cidades, onde já não existia mais “a sensação de estar sempre atrasado”. Na verdade já não existia mais qualquer atividade rotineira, vida social ou o saudoso estresse do trânsito acalorado e barulhento. Aquilo que outrora era até uma chatice para a maioria dos habitantes da metrópole, agora era pura nostalgia. “Nós éramos felizes e não sabíamos, essa é a grande verdade.” Dizem que toda mangueira do mundo é descendente de uma árvore mãe lá pros lados do Himalaia. Da mesma forma, podemos dizer com toda convicção que todos os problemas brasileiros eram provenientes da corrupção, que no Brasil era quase cultural. Desvios descarados de dinheiro dos cofres públicos traziam consequências gravíssimas e só aumentavam os padecimenrtos da população, já assombrada com a educação precária, o sistema carcerário decadente, a saúde pública cambaleante, leis fracas e cheias de brechas, salário de fome, supercargas de impostos, a burocracia (ou seria burrocracia?) que tornava tudo muito lerdo, polícias totalmente despreparadas para lidar com o ser humano (o lema sempre foi atirar primeiro e perguntar depois), descaso com os idosos e com os jovens, indiferença para com as classes marginalizadas, pouco esforço para reduzir as diferenças sociais através de uma distribuição de renda mais justa... E ainda existia a situação precária de milhares de crianças, jovens e adultos viciados que infestavam as grandes cidades, os quais além de se tornar um sério problema de segurança e até de saúde pública, acabavam por encontrar refúgio na coletividade viciosa e imunda das cracolândias da vida, como sub-humanos, desfavorecidos e negligenciados por uma sociedade indiferente, hipócrita, segregacionista e egoísta, voltada exclusivamente para seus próprios interesses materialistas. Por outro lado, governos incompetentes e irresponsáveis faziam vista grossa ao problema ou deixavam a situação relegada a um plano secundário, insistindo em não criar uma política séria de conscientização e recuperação de dependentes químicos. Some-se a tudo isso, os constantes dramas de famílias vitimadas pelo flagelo da violência sempre crescente, consequência da insegurança pública (Na verdade, no Brasil não deveriam existir secretários de segurança pública, e sim de INSEGURANÇA PÚBLICA). Meu Deus, quanta gente vitimada por balas perdidas e balas “perdidas”, de crianças e adolescentes a mulheres e idosos, indiscriminadamente. Quantos cidadãos decentes tombando vítimas de fatalidades e “fatalidades”. O Brasil, antes de tornarse um caos, já era o próprio caos. Que vergonha tínhamos de ser brasileiros e brasileiras, filhos do país da corrupção e da impunidade. Não parecia haver qualquer solução a curto prazo, pois o problema dessa impunidade e da referida corrupção desenfreada, era algo praticamente arraigado, qual um componente essencial da política brasileira. Um cíclo vicioso que sustentava corrompedores e corrompidos em detrimento do povo sofrido e cada vez mais massacrado pelo sistema implacável e decadente. Nossas instituições, como um todo, estavam contaminadas. Somente uma ação extrema resolveria o problema de uma vez por todas. Porque um resultado tão profundo não seria conquistado somente com debates e protestos. As multidões faziam a sua parte, acorrendo às ruas, com seus gritos e palavras de ordem, com seus panelaços e prenúncios de insurreições nunca concretizadas. Mas o povo estava habituado a blefar, e nunca sairia da mesmice se não surgisse um movimento com uma liderança corajosa e ousada, com potencial para recorrer a métodos menos civilizados, pois era necessário sair do tradicional comodismo brasileiro. A necessidade de abdicar de nossa notória covardia era urgente – para ontem, não para amanhã. Nem mesmo um empeachment* valia a pena. A situação não pedia a retirada de um governo, que seria substituído por outro ainda pior. Um empeachment não resolveria os problemas da crise sem precedentes na história do país, apenas mudaria o foco das atençoes, destarte protegendo um dos maiores corruptos da história do Brasil e direcionando o foco rumo à presidência da República – que não deixava de ser o ponto de infecção –, mas que àquelas alturas passava a ser também o bode expiatório perfeito. Ou seja, o empeachment era na verdade um grande golpe de mestre. Uma pilantragem política ardilosa e bem arquitetada pela oposição, e que tinha tudo para dar certo. O apoio era geral, não que aquilo fosse conveniente ao país naquele momento dramático, mas porque todos estavam envolvidos em maracutaias, e portanto pisando em gelo fino, protegidos de terrível chuva de granizo sob um teto de vidro. Em suma, todos tinham rabo preso. Era então prudente ficar do lado certo, mesmo que este lado fosse o errado. Apesar que no meio político, o certo e o errado são absolutamente relativos, companheiros e cúmplices inseparáveis, andando sempre de mãos dadas, pois são parceiros na prática da injustiça e na divisão dos despojos dos oprimidos. Tornara-se imperativo que algo muito mais surpreendente e radical acontecesse, pois fosse lá o que viesse, as consequências não poderiam deixar o país pior do que já estava. Enfim, estava aberto o caminho para a supressão do diálogo, que nunca levara a nada. Não no Brasil, onde era costume muito se falar, muito se prometer, porém nada jamais ser cumprido. Somente a lei da força poderia fazer reluzir a luz da razão e da verdade. A injustiça era a solução para as falhas da justiça. Era o momento certo para desaguar as mágoas há muito reprimidas. Não. Reprimidas não me parece o termo correto ou mais apropriado. Engasgadas. Sim, engasgadas é mais apropriado. Era o momento certíssimo para desaguar todas as mágoas há muito engasgadas na garganta e no coração do povo. *¹ Processo instaurado com base em denúncia de crime de responsabilidade contra alta autoridade do poder executivo (p. Ex., Presidente da República, governadores, prefeitos) ou do poder judiciário (p. Ex., ministros do S.T.F.), cuja sentença é da alçada do poder legislativo. * ² Destituição resultante deste processo. * ³ Impedimento legal da continuidade do mandato de um Chefe de Estado.