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Lembranças de Terror
Antes de chegar à casa de Suzanna, Augusto resolveu levar uma pizza pra comer com a namorada. Parou numa pizzaria e enquanto aguardava seu pedido, ouviu alguns jovens brincando numa mesa de canto. Um dos jovens perguntou aos demais:
– Galera, qual a diferença entre um porco gordo e um gordo porco?
Os companheiros do rapaz, três moças e um garoto de cabelos espetados, pareciam surpresos com a brincadeira. Aquela pergunta indiscreta e um tanto quanto preconceituosa gerou um certo desconforto em todos, já que o garoto falava alto.
– Ah, vamos lá, gente! É só uma piadinha inocente. Ninguém sabe a resposta?
– Eu não sei – falou sem graça a moça loira sentada à direita do brincalhão. – Alguém sabe?
– E aí, ninguém? – insistiu o rapaz.
Os demais jovens, um a um, deram de ombros, constrangidos e visivelmente incomodados com a cena indiscreta e de péssimo gosto do rapaz.
– Ambos são gordos e ambos são porcos, gente! Ah, qualé! –completou o brincalhão sem noção, caindo sozinho na gargalhada, enquanto os amigos, ligeiramente embaraçados, olhavam pros lados, disfarçando a vergonha e doidos pra encontrar um buraco e se esconder.
Brincadeira sem graça e inoportuna, já que várias pessoas que estavam na pizzaria se voltaram pra observar a cena patética. Claro que vários gordos faziam parte da platéia. Irritados com a palhaçada, alguns se levantaram e saíram furiosos.
Conseqüências graves podem provir de ações e palavras. Geralmente as palavras geram as ações, as ações geram as conseqüências, conseqüências que podem ser graves ou não. Mas elas sempre existem.
“Mauricinho babaca”, pensou Augusto, de alguma forma se identificando com o adolescente. Augusto sabia bem o quanto um jovem tolo e inconseqüente pode ser danoso em suas ações.
Dez anos antes, durante as férias de família numa cidade do interior de São Paulo, ele viu e viveu as emoções de uma atitude inconseqüente.
Dar um rolê de bike sozinho pelas imediações da Rodovia SP-340, a Rodovia Dr. Adhemar Pereira de Barros, parecia ser um programa interessante naquele anoitecer de 23 de dezembro de 2000. A época de natal, com todas as suas chatices e hipocrisias, é perfeita para qualquer atividade ilícita. Numa data em que pessoas comem como porcos ou são praticamente forçadas a presentear todo mundo, além de ter que fingir amar quem odeia, e até fingir uma falsa felicidade só para dar a impressão de que não é um desgraçado, nada mais adequado que a chegada repentina dum armagedom pra expor todo o fingimento e cinismo.
Aos treze anos, Augusto já achava que sabia de tudo. Sentia-se bem quando estava sozinho. Mas naquela tarde, estava inquieto enquanto pedalava contra os faróis do número incontável de carros que passavam a milhão, apressados para chegar aos seus destinos. Fim de semana prolongado, trânsito intenso, tudo que Augusto queria pro seu plano macabro.
Assim que chegou ao viaduto, estacionou a bicicleta num canto escuro e sentou-se no gramado. Tentou contar os carros, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10...
Impossível, era um milhão de carros por segundo. Cada caminhão ou ônibus que passava, só faltava arrastá-lo num vendaval. Divertido pra caramba. Mas não era o bastante pra aplacar a vontade sombria que o inundava de adrenalina.
Tentou dissuadir os próprios desejos dissolutos, mas foi dissuadido pelos mesmos a desistir de tentar dissuadi-los. Convenceu-se de que se não fizesse aquilo, lamentaria para sempre por não tê-lo feito. Só se tem treze anos uma vez, e a imunidade acaba tão depressa. Dali a cinco anos, já não seria mais um pré-adolescente, e estaria plenamente apto a responder por todas as suas ações. Já aos treze anos, tudo era maravilhoso, poder-se-ia fazer o que quisesse, e estaria perdoado. Mesmo que explodisse o mundo.
Augusto começou a vasculhar as imediações com sua lanterna. Conseguiu encontrar pelo menos umas vinte pedras caprichadas que quase encheram a bolsa que carregava às costas. Escolheu uma das maiores, pesada e pontiagudona, dava gosto de ver. Era só uma questão de aguardar até que surgisse o alvo perfeito. E ele surgiu, imponente e enorme ao longe. Augusto sentiu um frio percorrer-lhe a espinha. Foi invadido por uma sensação indescritível de poder e ansiedade. Era um caminhão com uma carga enorme. Até parecia que não conseguiria passar debaixo do viaduto.
Augusto respirou fundo e se preparou. Era um garoto forte, fruto das aulas de natação e dos treinos intensos na escola de karatê. Começou a girar o braço como um doido, concentrando o máximo de força possível. E no momento certo, liberou a pedra, que acertou o vidro do caminhão bem no lado do motorista. O caminhão titubeou em ziguezague, se desviando pra esquerda, e inacreditavelmente, sob um som horripilante de ferro se retorcendo, começou a arrastar vários carros pequenos que voavam rumo aos céus como se fossem brinquedos, se espatifando em seguida fora da pista em giros estonteantes. Outros carros que vinham atrás freavam abruptamente e capotavam se chocando contra as colunas de sustentação do viaduto ou contra o próprio caminhão já totalmente fora de controle e prestes a virar, espalhando toda sua carga de sacos de cimento e cal que ajudariam a aumentar a mortandade entre as dezenas de vítimas sufocadas pela poeira cega e irrespirável que cobriria os céus já pretos pela fumaça das explosões de vários carros. Num instante, tudo que se via era um horror de fogo, explosões e gritos alucinantes de dor e desespero, enquanto Augusto, incrédulo com a calamidade que causara, parecia petrificado, boca aberta e olhos esbugalhados diante de tanto horror.
E assim, o menino de comportamento egocêntrico e arrogante foi o principal responsável por uma tragédia que assombrou o país inteiro e foi notícia nos principais meio de comunicação do mundo. Quinze vidas se perderam juntamente com seus sonhos e desejos, e várias outras foram destruídas para sempre, tudo por causa de um garoto irresponsável que só queria se divertir jogando pedras em carros numa rodovia muito movimentada.
Ninguém jamais soube da verdade, e Augusto passou a sua adolescência em meio a pesadelos, crises de consciência, acompanhamento psicológico e remédios controlados. Mas ele nunca contou a verdade negra nem mesmo para o padre Cañedo, amigo da família. Toda sua revolta e amargura desde então, interpretadas erroneamente por seu pai como “caprichos de um rebelde sem causa”, tinham por base exatamente aquela tragédia, cujos fantasmas sempre o perseguiriam implacavelmente sedentos de vingança, e ele, buscando uma forma de alcançar o perdão impossível.
– Seu pedido, senhor.
A voz da moça parecia vir de muito longe, enquanto ele ia gradualmente voltando à realidade. Ficou meio sem jeito diante do olhar curioso da atendente.
– O senhor está se sentindo bem?
Ele respondeu que sim, enquanto retirava rapidamente o dinheiro da carteira. Estava tão envergonhado que só queria sair dali o mais rápido possível. Por quanto tempo permaneceu lá no balcão, absorto como um zumbi? De vez em quando isso acontecia, mas nunca acontecera em público. Até então.
Entregou o dinheiro à moça e saiu rapidamente com a pizza e a coca-cola, sem sequer ouvir a garota o chamando para entregar-lhe o troco. Entrou no carro e foi embora.