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À Sombra do Patíbulo

Uma coisa, no entanto, não era mera especulação: os investimentos de caráter social do Instituto Google Negro eram evidentes e faziam a diferença nas regiões mais carentes da capital paulista, foco inicial das atenções da ambiciosa instituição e suas pretensões.

Por fim, atingidos os objetivos iniciais, foi criado um

evento anual voltado para a população em geral, o qual deveria preceder a “Noite dos Lordes”, um ritual secreto sobre o qual circulavam informações diversas, das mais elogiáveis às mais aterradoras.

Embora o evento ocorresse somente uma vez por ano, em outubro, o recrutamento de voluntários – peças fundamentais para sua concretização –, começava em junho. Era um período de grandes expectativas, pois gerava muitos empregos temporários. Os lucros eram revertidos em prol das causas sociais empreendidas pela organização.

 À medida que os eventos patrocinados pelo Google Negro se tornavam cada vez mais prestigiados, o número de pessoas que desejavam participar também aumentava. Grandes massas humanas, oriundas de todas as partes afluíam para os eventos. Em harmonia com a publicidade massiva, as massas queriam conhecer as novidades gastronômicas elaboradas pelos misteriosos chefes de cozinha que causavam tanta sensação. Como o restaurante Google Negro era inacessível ao povo comum, seus eventos livres eram a oportunidade da população desafortunada de saborear seus pratos exóticos. Suas receitas combinavam ingredientes e sabores não declarados, o que levava às mais controversas conclusões e pensamentos.

Por trás das cortinas do mundo real e do entretenimento provido ao povo, carente de atenção e negligenciado pela lideranças públicas, as atividades ocultas da organização se ampliavam através de ações tão discretas que nem se cogitavam hipóteses desfavoráveis dentro do contexto de legalidade.

A edição número três do evento aconteceria num parque muito conhecido da Zona Leste, e prometia ser melhor que as duas edições precedentes. Haveria espaço para tudo e para todos, com muitas brincadeiras, gincanas, shows, competições com direito a pódio, medalhas e tudo mais. Enfim, toda sorte de entretenimento. Durante uma semana, do dia 25 ao dia 31 de outubro, seria só festa. Naquele ano, tudo estava destinado a ser melhor que antes. E a sociedade só ganhava, já que os lucros tinham caráter filantrópico e seu destino final eram as causas sociais do Instituto GN (Google Negro), numa espécie de troca. “Você nos dá de bom grado, nós lhe devolvemos em dobro de bom grado”.

No lado obscuro, à parte do evento popular, havia o enigmático baile denominado “A Noite dos Lordes” (também conhecido na web como “os noturnos”), que segundo acreditavam certos jornalistas sensacionalistas, ocorria no dia 31 de outubro, à meia-noite, em algum lugar da região Centro-Oeste.

Especulações a parte, o Instituto Google Negro jamais chegou a abordar qualquer assunto referente à “Noite dos Lordes”, deixando no ar a sensação de que tudo não passava de bobagens oriundas da mente fantasiosa de certos profissionais da imprensa sensacionalista.

Segundo certa fonte anônima que jurava fazer parte do seleto grupo de participantes, o Instituto Google Negro tinha motivos para manter o mais absoluto sigilo, pois o tal baile seria palco não apenas de excentricidades, mas de rituais horripilantes.

Ainda segundo a tal fonte, aquele seria um grande encontro de judeus poderosos, gente que se dedicava à caça de adeptos do nazismo, os quais após sequestrados serviam de objetos para as mais inquietantes perversidades.

Se tudo isso era verdade, então explicaria em parte o enorme arsenal que fazia parte da segurança do local, uma verdadeira fortaleza, composta por uma mansão e várias outras construções dentro duma área gigantesca. No subsolo ficavam os complexos hospitalares da organização, dotados de todo o aparato tecnológico mais avançado disponível no mundo, além do laboratório e do Centro de Pesquisas Avançadas. Tudo à disposição dos cientistas e das equipes médicas.    

Uma muralha de cinco metros de altura cercava tudo. Larga o bastante para comportar guaritas a intervalos regulares. Dentro daquela fortaleza, um verdadeiro exército de vigilantes armados e cães valentes faziam do perímetro um lugar aparentemente inexpugnável. Certo boato difundido na internet garantia que até armas antiaéreas de fabricação russa faziam parte do arsenal, o que tornaria aquela propriedade realmente uma grande fortaleza. Mas as autoridades, por razões tão obscuras quanto a Irmandade Ancião, nunca levaram a sério os boatos. Houve até uma atitude irônica do secretário de segurança de São Paulo, que ao ser indagado por um repórter sobre essas informações, perguntou-lhe: “você também acredita no Sasquatch, rapaz?”

De qualquer forma, apesar do descrédito das autoridades, muita gente levava isso muito a sério. E com isso, ficava no ar a pergunta: se é verdade, então por que tanta segurança?

Havia um heliporto ao lado da mansão. Na pista de pouso, para aviões de pequeno porte, uma torre com radar orientava os voos que chegavam ou partiam.

Políticos de alto escalão, empresários, artistas renomados, gente da alta sociedade. Gente discreta e disposta a manter sigilo absoluto a qualquer preço. Pessoas influentes e acima de qualquer suspeita que precisavam manter a máscara, sem se expor a qualquer espécie de escândalo. Componentes de um grupo seleto de endinheirados, composto por cidadãos de várias nacionalidades. Gente que, entre outras coisas, também fazia caçada humana. Supostamente, as vítimas, sob efeito de drogas, eram libertadas naquela vasta floresta particular, mantida justamente para estes fins. Na fuga alucinada pela sobrevivência, as vítimas, apavoradas e desorientadas se embrenhavam mais e mais na mata, sem chance de escapatória, pois em qualquer dos lados que chegasse, dava de cara com uma cerca de arame eletrificado, atrás dos quais um corredor protegido por cães valentes e homens bem armados. E ainda havia o contingente de seguranças distribuídos sobre a extensa muralha, com ordem para atirar. Era uma fuga contra a morte, mas que acabava inexoravelmente em seus braços. Os caçadores ensandecidos eram implacáveis em sua missão de matar, que finalizava com a degola de sua vítima, da qual podiam levar o que quisessem como souvenir, lembrança de sua caçada. Os corpos passavam por um processo de trituração e eram servidos como ração para os animais do zoológico particular.

No futuro não muito distante, a Polícia Federal mostraria ao mundo o maior terror que a humanidade já presenciara nos tempos modernos pós Segunda Grande Guerra Mundial e os campos de extermínio nazistas. Mas até chegar a vez de ser iniciada uma investigação profunda, cabeças de toda sorte de pessoas rolariam por terra.

Nos supostos arquivos secretos da organização, protegidos por poderosas portas blindadas nos subterrâneos mais recônditos da propriedade, milhares de documentos escritos e no formato audiovisual, mantinham registros de caçadas implacáveis, com jovens sendo decapitados após serem atingidos mortalmente por tiros, flechas e uma infinidade de outras armas. Cães dilacerando carne humana sob gritos histéricos de horror, risadas e aplausos,  até brindes comemorativos à base de sangue humano. Jovens se digladiando até a morte para entretenimento de gente inescrupulosa. Um verdadeiro inferno de imagens pavorosas que impressionariam até os mais insensíveis, e que, no entanto, entre eles eram apenas parte do show, um registro de seu sórdido e doentio entretenimento.

Segundo a misteriosa fonte anônima, essa era a realidade desconhecida até mesmo para aqueles que especulavam sobre as atividades mais sombrias da Irmandade Ancião. Todos estavam tão longe da verdade, como os Pólos Norte e Sul estão um em relação ao outro, e a Sibéria em relação à Amazônia.

A “Noite dos Lordes” lucrava milhões, e a cada edição enriquecia mais e mais os cofres da organização, ampliando a grandeza de seu império secreto. Enquanto isso o Instituto Google Negro expandia suas atividades “filantrópicas".

Lindas garotas cativas eram leiloadas para delírio de psicopatas milionários, loucos por lascívia. Muitos desses ilustres associados apreciavam a retirada cirúrgica de membros, pois esse “ingrediente” era o que os excitava. Sinistras câmaras distribuídas por um longo e sombrio túnel subterrâneo abrigavam dezenas de garotos e garotas mutilados, assombrações humanas. Desmembrados, aleijados e cegos para prazer e depravação sexual de uma elite corrupta e suja. Tudo feito pelos cirurgiões da irmandade no suntuoso centro cirúrgico, altamente equipado e pronto para atender as exigências de uma distinta plateia de gente de estômago forte, muita grana no banco e nenhum senso de piedade no coração. No fim das contas, parecia haver um sentido “humano” para tudo aquilo, pois ao passo que as carcaças humanas eram transformadas em ração para animais, os órgãos eram transplantados em ricaços que desembolsavam fortunas astronômicas para sobreviver à custa de muitas vidas inocentes. Um meio mais que providencial de escapar às longas esperas por doadores e em muitos casos, à própria morte precoce. E assim, enquanto tiros certeiros eram disparados e caças tombavam, órgãos precisavam ser extraídos para transplante imediato. As filas eram enormes, e em muitos casos, os próprios pacientes eram os caçadores, algozes de suas vítimas, benfeitoras involuntárias e incondicionais. Assim, com muito poder e prestígio, além de recursos cada vez mais ilimitados, a organização dava à sociedade a “ajuda” que geraria no futuro próximo um trauma tão aterrorizante que gerações não seriam suficientes para apagar da memória da história a intensidade e profundidade do sinistro e bizarro absurdo.

Por outro lado, não seria de se espantar que a misteriosa entidade estivesse investindo alto em material bélico altamente sofisticado com o intuito de criar uma das mais poderosas organizações paramilitares dos tempos modernos. Galpões secretos em vários lugares do país, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, muito longe do conhecimento ou desconfiança das autoridades, escondiam um terror sem precedentes, um estoque de armas tão poderoso que seria suficiente para derrubar as estruturas de muitos países pequenos. Desta maneira, também não foi nenhuma surpresa quando informações oriundas de uma fonte anônima aguçaram a atenção da imprensa para o golpe de estado que derrubou o presidente da Venezuela, levando luz ao belicoso país bolivariano. Segundo a tal fonte, a organização seria a principal patrocinadora do golpe.

Enquanto isso, o Instituto Google Negro, em suas atribuições de caráter humanitário investia em pesquisas voltadas para a cura do câncer, da AIDS, além de várias outras doenças que afligem o mundo. Moradores de rua recebiam vários tipos de assistência. Lugar para se alimentar e dormir não lhes faltava, já que o instituto havia construído cerca de cinquenta albergues espalhados pelo país. Banho e camas quentes com lençóis sempre limpos, roupas doadas às toneladas pela sociedade, fora muitos outros tipos de contribuições que chegavam diariamente, somados aos serviços médicos e odontológicos prestados pela organização, fariam do Instituto Google Negro um exemplo a ser seguido pelo mundo. Mas, como se tudo isso não bastasse, o IGN ainda investia pesado em educação e cursos de capacitação profissional para a população carente. A finalidade primária era retirar as pessoas das ruas e da pobreza por meio da educação e da profissionalização.

No ínterim, as pesquisas genéticas recebiam atenção especial. E a necessidade de cobaias levou os agentes às ruas das grandes cidades em busca de “voluntários”. Em pouco tempo os estoques estavam repletos de “matéria prima” à disposição dos cientistas.

Entrementes, enquanto as experiências se desenrolavam no submundo da verdade, a Irmandade Ancião permanecia intocada, protegida por uma aura de sombras. Não parecia justo usar “voluntários de baixa qualidade” para pesquisas tão essenciais, nas quais se empregava tecnologia de ponta. Era preciso que o material humano usado como cobaia estivesse à altura dessa tecnologia, dos recursos e da mão de obra especializada de altíssimo nível empregada.

Ao menos nessa primeira fase, gente de poucos meios, ou mesmo miseráveis, muito mais acessíveis nas periferias, nas favelas e principalmente nas ruas, eram dispensáveis para o “voluntariado”, pois não eram de boa qualidade. Pele boa, carne boa, órgãos excelentes, educação... As exigências se somavam às exigências já em voga.

Neste ponto soava a maior de todas as ironias, pois pobres ou miseráveis desaparecem todos os dias e as autoridades estão pouco se lixando para seu sumiço. Mas, quando os desaparecidos são pessoas de certo poder aquisitivo, aí as coisas mudam de figura e até de configuração.

Claro que ninguém jamais conseguiu comprovar a existência dos tais podres por detrás do “Baile dos Lordes”.  Mas o fato é que apesar dos relatos fantásticos, as informações não pareciam ser totalmente fantasiosas, afinal de início até mesmo o baile parecia ser invenção de certo repórter sensacionalista. Mas enfim a coisa se mostrou verdadeira, e desde então o jornalista passou a ter grande notoriedade e credibilidade.

Destemidamente ou irresponsavelmente, o repórter fazia sérias acusações, atribuindo à Irmandade Ancião culpa por grande parte de toda sujeira propagada na Deep Web, como tráfico humano, pedofilia, terrorismo, antissemitismo, homofobia, racismo, pornografia, canibalismo, assassinatos, entre muitas outras coisas terríveis, bastante comuns no temível e obscuro universo da Internet Profunda.

Certo dia a polícia foi chamada por moradores de rua para atender uma ocorrência no antigo centro de São Paulo.  E lá estava um indivíduo jogado num beco imundo, nadando em vômitos e dejetos humanos. Vítima de uma overdose, o homem foi logo conduzido de imediato a uma das unidades hospitalares mantidas pela Irmandade Ancião, onde foi identificado e medicado. Curiosamente, embora tenha sobrevivido, o profissional nunca mais foi mesmo.  Dependente químico, ficou internado por um tempo e logo caiu no anonimato. Depois de vários exames, foi diagnosticado com demência, herança do uso constante de heroína. E para piorar, um exame anti-HIV deu positivo. Era o resultado de uma vida aparentemente desregrada e imoral. Tudo negado pela família, claro. O fato é que após tudo isso, numa certa manhã fria, o corpo do jornalista foi encontrado boiando no Rio Tietê. Suicídio? Assassinato? Nunca se soube a verdadeira verdade, embora o caso tenha sido registrado como suicídio.

Denúncias e mais denúncias acumuladas durante meses e meses de incansáveis investigações por parte da Polícia Federal,  compunham um documento de milhares de páginas, que foi chamado de “Dossiê Google Negro”. Mas aí, de repente, a PF recebeu ordens de arquivar e abafar o caso. Obviamente, ordens diretamente do topo do poder, em Brasília. A razão, um mistério que só veio acrescentar a outro grande mistério. Logo, tudo que tinha relação com o “Dossiê Google Negro” desapareceu dos arquivos da PF. Era o fim das investigações que tinham como alvo a enigmática e autossuficiente “Irmandade Ancião”.