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            O Milagre da Sociedade Canibal 

 

E assim, no dia 25 de outubro, o evento aberto ao grande público tinha início com todas as especulações, polêmicas e expectativas que o precediam, rondando-o desde sempre. E na medida em que as especulações aumentavam, aumentava também o número de pessoas que queriam conhecer, participar e provar os deliciosos sabores ali oferecidos. Almoços, jantares, petiscos, espetinhos, cachorros-quentes, pizzas, esfirras, pasteis etc. Enfim, uma estonteante variedade de alimentos dos mais populares aos mais sofisticados. Sabores tão originais e diferentes que ninguém conseguia desmistificar o segredo de suas receitas misteriosas e tão sedutoras. Mesmo renomados chefes de cozinha se entregavam ao prazer quase enlevante daquelas delícias, absolutamente deslumbrados com sabores que pareciam ocultar propositalmente um certo mistério, aliado a suaves pitadas de culpa e remorso, como que implorando para ser desvendado e liberto de seu enigma intrínseco. Sensações estranhas e recorrentes. Era como ser partícipe de um crime ou de algo oculto à razão, pernicioso e libertino ao extremo. A cada prazer de um sabor, um convite à emoção e até mesmo à lágrima mais incompreensível. E quanto mais se comia, mais se desejava, e mais sentimento de culpa afluía-lhes mentes e almas, num profundo e inexplicável pesar, como se ao devorar um hot-dog, estivessem comendo as carnes de um ser vivo. Como se a cada espetinho, estivessem a devorar um naco de carne de algum inocente. E mesmo assim, era quase impossível parar, porque aquelas estranhas sensações tinham poder tão viciante quanto profano. E ninguém se abria com ninguém, apenas experimentavam suas próprias sensações de culpa e vergonha, sem saber que todos os outros também sentiam as mesmas sensações e emoções.

 

Todos que provavam queriam mais e mais. Mais e mais. Como se aquilo fosse uma missão sagrada. Era quase impossível resistir àquelas carnes tenras de aparência tão suave, cheiro penetrante e sabor arrebatador. Algo que aliado àquela bebida avermelhada de nome misterioso – “Noturna” –, parecia se completar totalmente e divinamente numa junção perfeita e inconsciente, que absorvida por cada um, ganhava corpo e alma se desmistificando na indelével forma de pecado.

 

Os adultos se sentiam ligeiramente constrangidos, muitos choravam. E ninguém entendia a razão de tanta emoção que se aflorava num coletivo tão amplo. E tamanha era a paz que envolvia a todos, que até parecia surgir um súbito vínculo que quebrava as barreiras raciais e sociais, unindo ricos e pobres, negros e brancos num único ritual: comer e beber. Beber e comer. Comer e beber. Beber e comer. Comer e comer, beber e beber. Era a única forma de se autoconsolar e se redimir de algo que ninguém sabia o que era.

 

Desta forma, ao voltarem para suas casas durante toda aquela semana que antecedia o Dia das Bruxas, a única ansiedade era pelo dia seguinte, quando tudo se repetiria num ciclo vicioso. Quando todas aquelas sensações poderiam de novo ser sentidas repetidamente.

 

Era uma felicidade tão melancólica e tão incompreensível que deixava a muitos perplexos em sua própria perplexidade. Das barraquinhas de pastéis ao parque de diversões repleto de adultos e crianças; das apresentações artísticas ao ar livre aos palcos onde artistas se apresentavam com suas bandas, tudo era um misterioso clima de paz e harmonia tão singular que mais parecia um inexplicável milagre.

 

Como se tudo que ali fosse consumido, causasse uma purificação na alma, lavando todos os pecados e trazendo à tona as memórias mais secretas de cada um, e livrando-os da arrogância e da mesquinhez inerentes.

 

Desejos, paixões ardentes, traumas latentes. Muitos se entregavam a uma repentina letargia. Outros simplesmente, simplesmente.

 

Havia na atmosfera algo de proibido que estava sendo consentido. Algo que pesava, mas que ao mesmo tempo parecia libertar todas as culpas e medos, e ansiedades e desesperanças. Os sucos eram de uma delicadeza tão sublime que fazia as crianças repetir a todo instante, felizes em sua inocência.

No geral, todos tinham a mesma impressão e opinião: tudo ali era divino. Como se um anjo estivesse entre eles, cuidando pessoalmente dos preparativos de cada alimento, de cada bebida, cada suco, cada diversão.

 

E assim, do primeiro ao sétimo dia, tudo ocorreu acima do esperado. Da parte do povo, só elogios e agradecimentos. Da parte da imprensa, muitas perguntas sem respostas e elogios às toneladas.  

 

No ínterim, mesmo semanas depois, após análises feitas em amostras de vários produtos, não se chegou a uma opinião conclusiva sobre os misteriosos ingredientes que compunham várias receitas exclusivas do Google Negro, o que só servia para ampliar o mistério e a curiosidade em torno do instituto e seus eventos filantrópicos.