10/18
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Na fila da morte
O homem parou o carro e ficou observando por um momento a casa simples uns cinquenta metros a frente, no lado esquerdo da estrada de terra. Uma porteira improvisada dava acesso à propriedade. À frente da casa havia uma varanda, onde um senhor, rosto coberto por um chapéu de palha, parecia dormir numa cadeira de balanço. O vento agradável naquele lugar quente devia ser uma doce tentação para uma soneca.
O homem pegou uma pasta e retirou de dentro alguns papéis presos por um clipe de plástico azul sob o qual uma foto três por quatro. Analisou por um instante cada uma das três folhas, e em seguida saiu do carro, dirigindo-se calmamente em direção à porteira da casa.
Mal ele se aproximou da porteira, um cachorro com cara de poucos amigos chegou do nada, correndo como um doido a latir escandalosamente.
– Ô de casa – gritou ele, as mãos em concha.
O senhor abriu os olhos, esmorecido e sonolento. A porta se abriu e uma mulher de aproximadamente meia-idade saiu enxugando as mãos com um pano de prato e um olhar de surpresa.
– Sim? Pois não?
– Boa tarde, senhora – gritou o visitante. – Estou procurando pelo seu Antônio, ele se encontra?
O homem fez esforço para se levantar da cadeira, mas antes que ele conseguisse a esposa já o estava auxiliando carinhosamente. De pé, ele olhou agradecido para ela, enquanto se apoiava com uma bengala.
– O que seria de mim sem você, Dolores?
Dolores deu uns tapinhas suaves no rosto do marido e sorriu, os olhos ligeiramente marejados. Fingia não ver, mas era perceptível para todos que ele estava definhando cada vez mais. Não dava pra acreditar que um homem tão forte e trabalhador pudesse ficar tão submisso em tão pouco tempo.
– Oh, meu velho...
Ele apertou delicadamente o nariz afilado da esposa, brincando.
– Deixe que eu abro a porteira pro moço. Vê? Tô forte como um barbatão. Pode vortá pra cozinha, viu?
Dolores acenou pro rapaz e voltou para dentro de casa, no mesmo instante em que seu marido começou a andar lentamente em direção à porteira.
– Boa tarde – respondeu com um sorriso amistoso. A longa fileira de dentes alvos e perfeitos mostravam que ele usava dentadura.
– Tudo bem com o senhor? É o seu Antônio Queiroz da Silva, não é?
– Sim, meu filho. Sou eu mesmo, respondeu ele serenamente.
– Muito prazer, seu Antônio – o rapaz estendeu a mão para cumprimentá-lo, mas o cachorro praticamente se interpôs entre ambos, latindo furiosamente.
– Quéto, Jovali! – O homem acarinhou a cabeça do cachorro, fazendo-o se acalmar instantaneamente. – É só um jovem amigo, companheiro. Tá tudo bem, viu? – completou curvando-se com dificuldades a fim de dar um beijo carinhoso e sem falsidade no animal, subitamente dócil e receptivo.
– Impressionante, seu Antônio. Vejo que vocês dois se entendem como grandes amigos.
– Ele é o melhor cachorro do mundo. Praticamente um filho. Não é, amigão?
O cachorro, todo eufórico, começou a correr de um lado para o outro, indo e voltando feliz da vida.
– Seu Antônio, será que podemos conversar um pouquinho?
– Claro, meu filho. Entre, por favor.
Já sentados sob a sombra agradável da varanda, o rapaz fez várias perguntas. Pouco depois dona Dolores trouxe café com torradas e serviu os dois. O jovem pediu gentilmente que ela acompanhasse a conversa, pois o assunto era de interesse de ambos. E assim a conversa chegou ao topo da questão.
O seu Antônio estava na fila do SUS à espera de um transplante de coração. Uma espera demorada e angustiante. Visto que cerca de setenta e cinco por cento dos pacientes morriam enquanto aguardavam por um órgão, era praticamente certo que ele não ficaria fora dessas aterrorizantes e sombrias estatísticas. Sendo tão pobre, a coisa se complicava mais, pois no Brasil, pobre nunca foi tratado com respeito e dignidade.
Para acabar com as filas de espera no Brasil, seriam necessários pelo menos aproximadamente quase setenta mil órgãos e tecidos. Obviamente que o país estava muito distante de atingir estes números. Não que essa fosse uma soma espetacular, mas porque no Brasil as prioridades sempre foram tratadas de maneira secundária. Além do mais, o povo brasileiro sempre foi muito mal informado sobre a importância da doação de órgãos. Havia um medo recorrente com relação a isso, como se de repente os doadores corressem o risco de ser mortos só para a extração de seus órgãos.
A situação do Seu Antônio só estava piorando, ele já não conseguia mais fazer as tarefas mais banais, e seu organismo estava prestes a entrar em colapso. Ele decidira que não queria mais ser enganado com promessas que nunca seriam cumpridas. Sinceramente, ele não tinha mais esperanças, e estava certo de que somente um milagre o salvaria.
Naquele dia, porém, aquele jovem e misterioso visitante, representante de uma entidade que o seu Antônio nunca ouvira falar, estava prestes a lhe anunciar o milagre que salvaria sua vida.
– Seu Antônio, e se eu lhe garantir que este milagre chegou hoje em sua casa? O senhor estaria pronto para aceitar este milagre em sua vida?
O jovem falou igualzinho um crente de um programa de rádio que o seu Antônio gostava de ouvir, embora o seu Antônio fosse um homem muito católico e devoto de uma infinidade de santos. Mas vai lá se saber que métodos Deus usa para anunciar suas atividades milagrosas entre os homens.
O homem e sua esposa se entreolharam, confusos. O rapaz então começou a explicar detalhadamente o motivo de sua visita àquela casa: Que pertencia a uma ONG que tinha um projeto unicamente voltado para transplantes de órgãos, cujos pacientes eram pessoas pobres de várias partes do Brasil; que tudo era grátis; que viera de muito longe, pois o nome do seu Antônio e outros vinte pacientes de várias partes do país haviam sido selecionados entre muitos outros em estado crítico; que sua organização era altamente especializada em transplantes; que o número de atendimentos que fariam por ano seria muito superior ao número de pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde; que não trabalhavam visando lucros, mas única e exclusivamente com o nobre intento de salvar vidas; que todo o projeto era bancado por pessoas anônimas empenhadas na causa da organização; que eles jamais perderiam um só paciente; que a equipe médica de que dispunham era uma das melhores do mundo, formada por especialistas de vários países que se entregavam totalmente em prol do tal projeto; que sua estrutura tecnológica era muito superior à estrutura de muitos hospitais particulares do Brasil, etecê, etecê e etecê.
Ao final da conversa, um sinceramente feliz e impressionadíssimo seu Antônio e sua esposa assinaram sem receios o documento que o rapaz pôs sobre a mesa de madeira.
– Seu Antônio, amanhã mesmo vai vir um pessoal para levar o senhor ao lugar onde ocorrerá sua cirurgia. Não se preocupe, tudo vai dar certo e o senhor terá uma vida plena e feliz com sua esposa. E de coração novinho em folha, hein?
Quando o rapaz se levantou para ir embora, o seu Antônio se sentia outro, subitamente revigorado. Finalmente faria o transplante tão desejado, a cirurgia que lhe permitiria ter uma vida ativa novamente. O sorriso do casal era a mais viva expressão da felicidade.