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A Armadilha
Depois de duas semanas acompanhando cada passo dela, ele já sabia praticamente tudo sobre sua escolhida. Seu nome era Lawrie Sophie Massay, 23 anos de idade, linda e promissora, de ascendência japonesa. Era como se a conhecesse desde sempre. Do gosto pela leitura ao prazer de passear diariamente com seu cão de companhia da raça Dobermann pelo parque, onde ficava sentada por cerca de uma hora apreciando a leitura de um bom livro. Do trabalho na Tech Nippo, sua empresa de tecnologia, ao happy-hour com os amigos. Das visitas periódicas à família no Bairro da Liberdade à crise no relacionamento com Augusto, o namorado traíra e sem escrúpulos, um playbobo de nariz empinado, um sem futuro fanfarrão e metido a dono do mundo, que escondia por trás de sua arrogância e prepotência, todo seu medo de enfrentar a vida e sair de baixo das asas do pai, um empresário de origem italiana, do ramo alimentício, que não desconhecia as falhas de caráter do herdeiro de seu pequeno império, fundado à base de muito trabalho duro, no bairro do Brás.
Voltando à realidade, o jovem suspirou. Inevitavelmente ele sempre se apegava às suas “peças”. Era um ponto fraco que ele precisava superar se quisesse realmente crescer dentro de sua profissão.
No entanto, pra seu próprio azar, sempre sentira atração por mulheres orientais. Mas aquilo era muito mais que isso. Lawrie era extremamente bela, dona de uma extraordinária mistura racial nipo-brasileira. Alta, de pele muito alva, longos cabelos claros e um belo sorriso moldado por um lindo olhar castanho. Tudo isso complementado por uma elegância no andar que causava euforia e excitação por onde passava.
A coisa estava chegando a um ponto em que o caçador até já conjecturara a possibilidade de procurar outra possível “voluntária”, desistindo assim de Lawrie. Aquilo estava sendo um verdadeiro teste de fidelidade para com a organização. Oh! Indecisão cruel.
Mas se ele permitisse que sentimentalismos interferissem em suas decisões ou escolhas, isso seria uma prova fiel e cabal de que ele não estaria maduro, preparado suficientemente ou mesmo à altura do Pentáculo. Mas ele estava, embora ainda fosse bastante jovem.
“Sua escolha é sua decisão, sua decisão é sua escolha. Suas escolhas e suas decisões refletem seu potencial e mostram quem você realmente é.”
Ele olhou para o relógio dourado em seu pulso. Se Lawrie obedecesse a sua própria pontualidade impecável, dentro de apenas cinco minutos estaria chegando.
Os dois últimos anos haviam feito um bem danado para o jovem “caçador”. Tornara-se um exímio perseguidor, habilidoso e impessoal nas escolhas, frio na decisão e objetivo na ação. Com Lawrie não seria diferente. Não se permitiria um revés, titubeando justamente agora, quando já havia concluído e enviado o relatório sobre suas atividades no cumprimento do dever, o qual obviamente incluía os dados referentes à sua “voluntária” de ascendência oriental. Afinal, Lawrie estava perfeitamente de acordo com a “qualidade excelente” exigida pela organização para esta primeira demanda. Estava claro que eles não aceitariam “produtos” que não fossem de “altíssimo padrão e de qualidade irrepreensível, pois se ‘a primeira impressão é a que fica’, nós deixaremos a melhor das impressões.”
Ele nunca fizera uma escolha errada e nunca falhara. Dentre os muitos “caçadores” e “caçadoras” espalhados pelo país e mantidos pela organização, era um dos melhores. Ele sabia que o Conselho o tinha na mais alta consideração, não apenas pela dedicação e empenho, mas também pelo alto nível de inteligência que tinha, além de valor, apreço e agradecimento que demonstrava pela irmandade, cujo poder e influência o haviam ajudado a vencer todos os obstáculos que se interpunham entre ele e o cargo almejado dentro de sua empresa.
Porém, um fator se colocava entre ele e sua ambição de alcançar seu objetivo maior, o Pentáculo. Como o cargo era vitalício, ele teria que esperar até que um dos membros fosse convidado por Deus ou pelo Diabo para viajar pro Além. Mas isso teria que acontecer mais cedo ou mais tarde, pois a morte chega uma hora ou outra até mesmo para um conselheiro, afinal eles também são seres humanos.
Era nos momentos de lazer, aos fins de semana e nas férias que podia mostrar serviço em favor da organização. Sem estresse ou correria, tudo na maré mansa.
E pensar que até uma semana antes, nunca havia pensado em adotar um cachorro. E não é que estava gostando da experiência? Quem sabe até ficasse com o cão assim que a missão atual chegasse ao fim? Até que não seria uma má idéia. Adquirira um Dobermann lindo, muito parecido com o de Lawrie. E àquelas alturas, estava se afeiçoando ao animal. Talvez isso até fosse bom, pois agindo de maneira genuína, ficaria muito mais fácil convencer Lawrie sobre sua paixão por cães e animais em geral. Que maneira poderia ser mais apropriada e original para conquistar a confiança de uma jovem romântica e apaixonada por bichinhos de estimação? Lawrie era uma verdadeira defensora dos animais, e sua crise com o namorado metido a besta se dera exatamente porque o imbecil detestava seu cachorros e insistiu para que a moça se livrasse de Ralph, seu Dobermann. Ela não aceitou sua caprichosa imposição, e a relação estremeceu. O detalhe ignorado por Lawrie é que quando um cachorro não gosta de alguém, é porque ele está farejando algo errado nesse alguém. E naquele caso, o danado do cão devia estar farejando as traições do rapaz. Como reza o ditado, “melhor um cachorro amigo que um amigo cachorro.”
Desde então, Lawrie vinha demonstrando certa tristeza, mas era forte e tinha tudo para esquecer o babaca. Além do mais, não deixara de seguir sua vida normal, como passear com seu pet pelo parque ou ler seus livros no banco da praça.
Voltando de seus devaneios, ele sentiu que estava um pouco ansioso e respirou fundo. Precisava se concentrar só na missão. Lawrie seria a voluntária que completaria sua cota de duas unidades. É isso e pronto. Nada de sentimentalismos agora!
Ficou andando pelo parque, por entre as árvores, sempre de cabeça baixa, o boné a encobrir seu rosto. Queria evitar as câmeras que infestam os lugares públicos hoje em dia. Mas mantinha-se atento ao local predileto da jovem, que já devia estar quase chegando.
O sol estava agradável naquele belo sábado outonal. Ele observou uma senhora passando com seu carrinho de sorvete. Era uma mulher de aproximadamente uns cinqüenta anos, simpática e forte, mas que a intervalos regulares fazia paradas curtas e segurava os quadris a fim de curvar o corpo para trás, como que sentindo algum desconforto, certamente causado por algum problema de coluna.
A velhice é certamente um grande mal, do qual ninguém pode escapar. Não que uma pessoa na faixa dos cinquenta esteja velha, pensou o jovem. Na verdade, a velhice é um tanto quanto relativa, nos dias de hoje. No entanto, apesar das dificuldades da vida, aquela senhora mantinha-se serena e sorridente, mostrando que neste ponto, felicidade também é algo absolutamente relativo. Uma pessoa pode ser rica e infeliz, ao passo que outra pode ser extremamente pobre e feliz. Mas, será que ela era assim mesmo ou aquela simpatia toda fazia parte de suas estratégias como vendedora? Por um momento ele imaginou aquela senhora como uma de suas “voluntárias”, mas sorriu diante do absurdo. “Voluntários” – ao menos naquela primeira fase –, deveriam ser pessoas especiais e que precisavam necessariamente ter idade entre dezoito e trinta anos, solteiros e sem filhos ou dependentes, excelente situação financeira, de boa formação e sem quaisquer deformidades ou doenças. “Produtos perfeitos para um início perfeito e marcante.”
Aquela senhora, pelo jeito, nem que fosse jovem, atenderia aos requisitos, pois se não fosse reprovada por conta de algum eventual problema de saúde ou por outra razão qualquer, sua pobreza se tornava uma razão mais que suficiente para rejeição. Pobres não serviam para ser “voluntários” na grande experiência que estava prestes a acontecer. No entanto, pobres poderiam ser beneficiados pela experiência, contanto que fossem aprovados como cobaias.
De repente um latido canino chamou a atenção do caçador. Voltando o olhar na direção oposta, sorriu ao ver que Lawrie chegava com seu andar gracioso, precedida pelo seu Dobermann alvoroçado e ansioso da liberdade proporcionada pela vivacidade do parque e sua atmosfera vibrante.
Imediatamente ele seguiu na direção de Lawrie, sendo seguido imediatamente pelo cão, já habituado ao seu dono provisório. A poucos metros de Lawrie, fingindo não estar vendo-a, quase a atropelou. Parou abrupto pedindo desculpas. Mas ela simpática, disse que estava tudo bem. Ele insistiu, se desculpando e mostrando toda aquela preocupação. De repente, estavam conversando descontraidamente, enquanto os dois cachorros brincavam a correr pra lá e pra cá.
Tudo que ele aprendeu na internet sobre animais de estimação estava sendo muito útil naquela conversa com Lawrie. Não mostrava haver quase nada que ele não soubesse sobre gatos, cachorros e uma infinidade de outras espécies de bichanos. Lawrie estava encantada. Ele, educadamente, como bom cavalheiro, a convidou para tomar um caldo de cana e comer um pastel ali perto, na barraquinha que estava sempre lotada de gente. Ela aceitou admirada, pois a chique barraquinha era seu ponto obrigatório antes de ir embora. Lá, conversaram por mais de uma hora a fio. Por fim, pra completar a afinidade mútua, combinaram de se reencontrar no dia seguinte no mesmo horário, no mesmo lugar.
E assim, durante outros quatro dias voltaram a se encontrar. No quarto dia, sexta-feira, André (nome com o qual ele se apresentou) finalmente a convidou para um jantar em seu apartamento ali perto. Pra sua própria surpresa, ela aceitou o convite dele, sem qualquer cisma ou desconfiança.
Embora nas últimas semanas ela não estivesse se sentindo muito bem, não negava que estava ansiosa pelo jantar daquela noite. No horário combinado ela compareceu, sem seu cachorro, claro. Ela estava deslumbrante. Ele a elogiou, verdadeiramente encantado com sua beleza.
Ele havia preparado um jantar simples e delicioso, com uma carne tão suculenta que ela comeu como uma criança feliz e gulosa.
Estranhamente, Lawrie Sentia-se muito a vontade ao lado de André, em quem depositava uma estranha confiança.
Ao fim do jantar ficaram conversando na sala. André era muito divertido. E a paz do ambiente, complementada pelo violoncelo da música de fundo, constante e agradável, tornava o ambiente perfeito para um bom uísque. Não que Lawrie gostasse da bebida. Mas naquela ocasião ela estava se sentindo confortável o suficiente para aceitar o convite de André.
André propôs um brinde.
– Salve à vida!
E ambos sorveram o primeiro gole ao mesmo tempo. Os minutos se passavam rapidamente, e a conversa dos dois se tornava mais espontânea e alegre.
Finalmente Lawrie disse que precisava ir embora. Mas André propôs só mais uma dose, pra formalizar a amizade dos dois. Depois ele a levaria em casa, sem qualquer intenção maldosa. Lawrie aceitou, mas somente para não desapontá-lo. Gostava de manter a sobriedade, pois era a maneira mais correta de se manter o controle da situação.
E assim, André foi preparar as taças, uma quantidade muito pequena, puramente simbólica. Porém desta vez ele adicionou à bebida de Lawrie um líquido incolor extraído a partir de um frasquinho discretamente retirado do bolso da calça.
Propôs mais um brinde.
– À amizade – brindou.
– À amizade.
Foi no segundo e último gole que aconteceu. Uma vertigem súbita e a taça simplesmente escapuliu à mão de Lawrie, como se ela estivesse perdendo o controle sobre seus membros.
– Oh! Perdoe-me... Não sei o que deu em mim, desculpou-se ela sem graça, levando a mão à têmpora ao mesmo tempo em que sentava no sofá para não cair.
– A culpa foi minha, não devia insistir para que você bebesse tanto.
Mas a voz de André foi sumindo gradualmente em meio a um zunzunzum que se intensificava, aumentando o desconforto de Lawrie. Ela massageava as têmporas, no intento de reprimir a tontura, mas ao carrossel que virara sua cabeça veio unir esforços uma náusea inesperada. E então uma sonolência, cada vez mais penetrante e invasiva.
De alguma forma, estava perdendo a faculdade de lógica e razão, como se repentinamente estivesse sofrendo uma lavagem cerebral que a desprovia rapidamente de seu eu, roubando sua identidade. Os brancos súbitos se intervalavam com crises de memórias antigas que se misturavam com novas memórias, num show monocromático. E então, como que milagrosamente, o incômodo foi se abrandando, e Lawrie se viu a flutuar incorpórea no vazio, como se num piscar de olhos houvesse sido teletransportada do chão firme para o vácuo negro do espaço sideral. Uma estranha sensação de leveza a envolveu enquanto ela se contorcia desequilibrada pela súbita ausência de chão. Então, do nada, surgiu um enorme luzeiro resplandecente que foi aumentando de tamanho e intensidade, até que ficou tão grande quanto o sol, bem a sua frente, rodopiando enlouquecidamente, lançando fagulhas quais meteoritos e cometas em todas as direções. Lawrie exclamou inebriada:
– Oh! É tão lindo! Estou presenciando o ato da Criação!
De repente, numa explosão surda a luz se fragmentou em um trilhão de fagulhas bem na sua frente. No momento seguinte, todas as fagulhas em expansão foram rapidamente sugadas pelo que antes consistia o centro da própria estrela. Só restou a escuridão, completa e cheia de uma estranha paz. Lawrie sorriu dominada por uma paralisia que a deixava inerte e sem forças, ao mesmo tempo em que sua mente se desvanecia embriagada, impiedosamente sendo tragada pelo breu absoluto. Lawrie nunca se sentira tão lívida e liberta, como que invadida por uma paz divina e consoladora, uma espécie de cura para todas as mágoas e dissabores da vida.
André a ergueu nos braços e em seguida se dirigiu rumo ao quarto, deitando-a na cama. Depois ficou admirando sua beleza. Lawrie era realmente uma garota muito bonita e tentadora, dona de curvas perfeitas e uma pele maravilhosa. André sentou ao lado da moça dopada a dormir profundamente, a fim de tocar-lhe os lábios rubros. Passou o dedo, sentindo a umidade, em seguida levou o dedo à boca, saboreando aquilo qual um néctar. Não resistiu à tentação de tocar-lhe os seios pequenos e firmes. E quando sentiu que não resistiria à tentação de possuir a jovem desacordada, o celular tocou e vibrou forte, livrando-o do libertino desejo de fazer mal à jovem indefesa.
Atendeu imediatamente. Do outro lado, uma voz o saudou com um “salve, André 020!”. André respondeu com outro “salve!”. A voz então lhe perguntou sobre o andamento das coisas. André confirmou a conclusão de sua missão e disse que estava se retirando do apartamento.
– Pode mandar o pessoal.
–Ok, André 020. Parabéns, vá descansar, você merece.
Despediram-se com outro “salve!” e “André 020” se preparou para deixar o quarto. Mas antes de sair, voltou a olhar para Lawrie. Suspirou e mordeu os lábios, indeciso. De alguma forma, aquela vez estava sendo muito diferente das outras vezes. Não estava sendo fácil sair dali. Foi preciso travar uma verdadeira luta interior para sair do quarto e por fim abandonar o apartamento alugado e decorado especialmente para aquela missão. Existia um desejo ardente de mudar as coisas, mas existia também um medo superior a qualquer coragem. Não podia ir contra a organização, era como um mero mortal se atrever a se rebelar contra Deus. Além do mais, não podia estragar seu futuro por causa de uma simples atração física. De qualquer modo, pensou, Lawrie agora era propriedade da organização.
Além do mais, a obra da organização estava acima de qualquer coisa ou desejo pessoal por parte de todos que lhe juravam obediência incondicional.