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Reflexões ao luar
O carro estacionou na estrada de terra, de frente à porteira que dava acesso à casa. Imediatamente ouviu-se o cachorro latindo como um doido desvairado. Na porta da casa, apressada, apareceu uma mulher jovem de avental, ansiosa a enxugar a mão com uma toalhinha, olhos arregalados na direção do automóvel do outro lado da cerca.
O rapaz desceu e abriu a porta de trás. Primeiro saiu dona Dolores, já se posicionando toda cuidadosa a fim de ajudar o esposo a descer do carro. Assim que viu dona Dolores, a jovem correu em direção à porteira, abrindo rapidamente e já se agarrando à mãe aos prantos.
– Mãe!
Por fim, após o abraço demorado e cheio de saudades, a moça se virou para dentro do carro, onde seu Antônio observava a cena, o olhar cheio de lágrimas.
– Pai – disse ela, mal conseguindo falar, de emoção –, como o senhor está bem, pai! Até parece que nasceu de novo, pai!
Em seguida ela se virou na direção do rapaz.
– Ai, moço... Nem sei o que dizer, moço...
E ela abraçou o jovem, genuinamente agradecida.
– Que Deus lhe abençoe, moço. O senhor salvou o meu pai.
Ele nada respondeu, apenas sorriu.
Seu Antônio saiu do carro e olhou ao redor. Então respirou fundo o ar puro do sertão. Nunca o ar daquelas terras lhe parecera tão saboroso, como se aquele momento simbolizasse o retorno à terra querida, após uma longa viagem a terras distantes. Em seguida seu Antônio se afastou do carro e se abaixou, olhando o chão como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. Sentia um profundo respeito pelas coisas mais simples. Acariciou o chão e pegou um punhado da areia macia, comum naquelas terras áridas. Cheirou, quase beijando, olhos fechados, se deliciando no prazer da vida que vem da terra. Passou a areia no rosto, delicadamente, como se estivesse lavando a alma com o próprio espírito da terra. Depois se levantou e foi em direção à porteira, onde o alvoroçado cachorro se esgoelava de tanto latir, ansioso da atenção de seu senhor que há muito não via.
– Meu bom Jovali – disse ele, os olhos cheios de lágrimas e já adentrando para abraçar o cão que o lambia e cheirava num desespero quase insano, de completa felicidade.
O rapaz abriu o porta-malas, de onde retirou os pertences do casal, e Levou tudo até a sacada da residência.
Durante a viagem de volta, tudo parecia mais leve. O carro parecia flutuar pela estrada de terra. Ao redor, os sons da caatinga soavam como a mais divina das sinfonias, anunciando o anoitecer precedido por um belo escarlate crepuscular.
Sem pressa de voltar, parou o carro à beira da estrada e saiu. Espreguiçou-se ficou a contemplar o pôr-do-sol. E mesmo quando o sol já havia desaparecido, deixando o mundo às escuras, permaneceu lá, fascinado pela noite sertaneja. Deitou no capô do carro, de onde tinha a impressão de que o céu límpido se movimentava num balé celestial.
Estranho, mas de repente tudo parecia fazer algum sentido. Aquilo era a vida. O ser humano não pode existir sem contemplar as coisas vistas, porém acima de sua compreensão. Há uma necessidade mútua e coexistencial. A natureza precisa do homem para ser contemplada, e o homem precisa da natureza para existir.
E os pensamentos afluíam-lhe com intensidade cada vez mais frutífera, perguntas complexas e respostas confusas acerca da vida, como há muito tempo não lhe acontecia. Era aquele ambiente puro e singelo que o enlaçava numa aura de sensibilidade e reflexão. E certamente chegaria a conclusões positivas no decorrer da noite, se de repente, no auge de seus devaneios, o celular não tivesse tocado, quebrando todos os seus encantos e concentração.
Após uma conversa rápida, ele se despediu e desceu do capô do carro. Guardou o celular e olhou para o horizonte, onde uma lua gigantesca começava a mostrar sua face.
– Quanta bobagem, murmurou ele, antes de entrar no carro e sair em disparada, os faróis parecendo dois pontinhos de luz perdidos na imensidão daquele mundaréu sertanejo. Atrás, uma nuvem de poeira se contrastava com a placidez da noite límpida.
Quando mais um dia raiasse nos céus cor de anil do Brasil, o Instituto Google Negro continuaria suas atividades “filantrópicas”, mais forte que nunca. E seus segredos ocultos, continuariam ainda por muito tempo, protegidos incondicionalmente, enquanto nos bastidores de suas fábricas, as máquinas continuariam a suprir a matéria-prima que carregava sua marca. Sua carne defumada continuaria crescendo em popularidade, assim como seus quitutes, suas salsichas, suas lingüiças de sabor inigualável; e seu vinho, o já famoso “noturno”, continuaria a lotar as prateleiras dos supermercados, rapidamente se tornando um verdadeiro vício em restaurantes, casas noturnas e bares de todo o país.
Não demoraria muito para que as carnes e salsichas produzidas pelas Indústrias Alimentícias Império S/A, fossem adicionadas à merenda escolar em todo o país. Era o nascimento de uma sociedade que sem saber, se afundava definitivamente no canibalismo e na fundação inconsciente de um Estado canibal, o qual duraria por toda uma geração, até que a verdade fosse descoberta e a vergonha, extinta sem alarde. Um escândalo significava expor a nação inteira à culpa coletiva de um trauma tão avassalador e penetrante que poria em risco a própria unidade nacional e sua existência como sociedade civilizada. Como toda verdade oculta, esta também viria à tona, mas não chegaria ao grande público, pois o segredo revelado era tão terrível que ninguém ficaria isento de culpa.
Mas inegavelmente, mesmo um trauma tão repulsivo, também deixaria seu legado às futuras gerações. E esse legado não deixaria de ser um milagre. O milagre da vida. “Vida humana em prol da vida humana.”
Mas o que ecoa hoje retumba amanhã, e não é para menos que leão que devora homem fica viciado em carne humana. Ao devorar um homem saboreia-se não apenas sua carne, mas suas faculdades também. O devorador torna-se cônscio da necessidade de querer mais e mais. É um vício que se transforma num círculo vicioso. E homens são mais que leões. Ao saborear a carne de seu semelhante, absorvem também sua essência e sua virilidade. Comer uma vez, mesmo sem saber que comeu, é desejar provar mais e mais mesmo sem saber que já provou.
A Medida Perfeita
“Dez unidades de IHC* para cada tonelada de carne animal produzida, esta é a medida que basta para que o produto adquira o sabor único e viciante. Com a posterior adição de outros ingredientes artificiais que definirão a característica única do produto, o mesmo estará pronto para as prateleiras, e conseqüentemente, para a panela do consumidor.”
(Texto de charge que aludia o extraordinário sabor das carnes produzidas pelas Indústrias Alimentícias Império S/A, a adição de carne humana. Autor desconhecido)
*IHC: Item Humano de Consumo